Lagenaria siceraria, uma planta formidável e seu uso mais curioso

Certa noite, já de madrugada, sou acordado com o toque distante do telefone. Esperei, porque meu quarto era bem afastado da sala. Alguém mais próximo haveria de atender. Mas não, o toque continuava. O computador, que eu havia deixado ligado ao lado da cama, ouvindo a mesa redonda da rádio Tupi, indicava 2:43 da madrugada. Quem estaria ligando aquela hora? Decidi atender. Levantei calmamente e caminhei até a sala. Sem pressa, na verdade torcendo para que alguém atendesse ou que o cidadão do outro lado desistisse. Mas o telefone continuava tocando. Atendi.

Do outro lado, a voz nervosa em um inglês atropelado. Era o Florian, um alemão que morava na casa. Ele ficou muito aliviado quando viu que eu havia atendido. Nós nos dávamos muito bem, conversávamos bastante e inclusive já havíamos feito uma breve viagem juntos para a Bavária. Para minha surpresa, ele estava ligando da delegacia, e precisava que alguém fosse buscá-lo lá. Havia sido detido por participar de um pega de bicicleta, e embora já tivesse sido liberado, a bicicleta ficaria detida até o pagamento de alguma multa no dia seguinte, e como os ônibus em Zurique não circulam de madrugada, não tinha como voltar pra casa.

Pensei nas duas únicas pessoas que tinha carro na casa. Jesus e Peter. Jesus era mais próximo de mim, e não se recusaria a ajudar o Florian, mesmo sendo tão tarde. Fui acordá-lo, mas seu carro estava quebrado. Sem outra alternativa, fui até o quarto do Peter.

Ele atendeu como um sonâmbulo. Demorou pra entender o que estava acontecendo mas se solidarizou com a situação do Florian. Entrei no quarto enquanto ele buscava seus documentos. Era um quarto exatamente igual ao meu, mas ele claramente era uma pessoa muito mais conectada que eu. Tinha um mac mini e um laptop da Apple em cima da mesa. Ipad, uma televisão com tela gigantesca e equipamento de som. Tudo grande e novo. Aquilo justificava o fato dele estar sempre ausente das áreas comuns da casa de estudantes. Vivia no seu quarto, onde tinha uma infraestrutura enorme, muito diferente da minha e da maioria dos outros moradores. Ao lado da cama, um item destoava completamente do entorno: uma Koteka.

A koteka é uma cabaça usada pelos homens de alguns grupos étnicos da Nova Guiné para cobrir o pênis. É o uso mais curioso de uma das plantas mais incríveis que eu conheço, a Lagenaria siceraria. Ela é uma cucurbitácea, da família do pepino , melão e abóbora, e está presente em praticamente qualquer país de clima tropical. O receptáculo das sementes é uma enorme cabaça, e isso permitiu que as sementes chegassem a partir da Africa, até a Asia, Oceania e América do Sul, simplesmente flutuando através do oceano. Chegando nesses continentes a cerca de 15.000 anos atrás, foram domesticadas de forma independente pelas populações locais, e possivelmente foram a primeira planta domesticada das Américas. Os frutos jovens podem ser fervidos e consumidos como legumes, e os maduros são utilizados como recipientes para água e alimentos, instrumentos musicais como tambores e flautas , bóias de pesca e também como Kotekas.

cabaça cabaças

Nesse caso, uma pedra ou algum outro peso é amarrado no fruto durante seu desenvolvimento, de forma a fazer com que ele fique alongado. Depois ele é coletado, limpo e queimado. Cera de abelha é frequentemente passada na parte de dentro, e a cabaça recebe dois cordões que vão ajudar na fixação. Um pequeno que vai ser amarrado em volta do saco do indivíduo, e outro maior, que vai dar sustentação na altura da cintura ou do peito. É uma utilização realmente inusitada de um fruto que é provavelmente o mais importante para as migrações do homem ao redor do planeta. Em um tempo anterior ao surgimento da cerâmica, era um pote natural, dado pela natureza e melhorado através da domesticação que tornava possível transportar água. Uma planta absolutamente formidável.

No caminho até a delegacia, no carro, perguntei a Peter sobre aquele item tão interessante, que se destacava tanto dos outros pertences que ele tinha no quarto. A história é a seguinte: Peter vinha de uma família extremamente religiosa, de pastores batistas, daquela terrível região dos Estados Unidos conhecida como Cinturão da Bíblia. É muito difícil encontrar americanos dessa região estudando fora dos EUA, talvez porque eles sejam muito cabeça dura, ou culturalmente muito apegados aos seus estados de origem. Mas Peter estava na Suíça, como uma honrosa exceção, fazendo um intercâmbio de 6 meses em administração de empresas.

Na década de 60, seu pai, então um jovem pastor, atendeu a uma convocação dos altos escalões da sua igreja e rumou para o remoto vale de Irian Jaya, na Nova Guiné. O governo da Guiné tinha planos de modernizar o país e percebeu que lidar com as tribos mais remotas do país seria tarefa difícil. Abriu então o país para evangelizadores para ajudá-los. E o pai do Peter foi um dos primeiros que se volutariou. Seu pai passou três anos entre os Dani, um dos grupos étnicos que habitavam Iran Jaya. Ali teria encontrado um povo rudimentar, ainda na idade da pedra, sem língua escrita, completamente pagão, e teria ajudado os Dani a descobrir o evangelho. Abriu ele mesmo as primeiras 18 igrejas da região e batizou centenas de pessoas. Peter falava disso com extremo orgulho.

Todos os habitantes da ilha andavam praticamente pelados, a não ser pela koteka que os homens usavam, e seu pai foi implacável em relação a essa estranha peça de vestuário. Foi voz ativa junto ao governo, convencendo-o do quão inadequadas eram as kotekas, símbolo do atraso e da condição tribal da Papua Nova Guiné. Devido a essa influência decisiva, o governo deu início a um programa de distribuição de roupas para as tribos de Iran Jaya, coordenado pelo pai do Peter. Essa e outras histórias, dizia o Peter, estão descritas no livro que seu pai escreveu contando suas aventuras junto às tribos da Nova Guiné (Torches of Joy: a stone age’s tribe encounter with the gospel- não se dêem ao trabalho de ler).

koteka1 Koteka

À medida que avançava na história ficava claro que entre todas as pessoas que moravam na casa de estudantes, Peter era o mais distante de mim. O orgulho que sentia pelo papel doutrinador desempenhado por seu pai era a coisa mais nojenta que eu já tinha ouvido. A Koteka no quarto do Peter era para mim um símbolo da importância das plantas para o homem, da relação intrincada e linda entre a humanidade e as plantas, da criatividade, da beleza que existe na agricultura e na domesticação, de como homens e plantas evoluem juntos, enquanto para Peter e sua família, eram um símbolo do atraso, do tribalismo, da barbaridade, do que precisava ser combatido. A Koteka para ele era um germe que precisava ser pasteurizado por roupas ocidentais, distribuídas gratuitamente por uma missão religiosa que também pasteurizaria, em um futuro próximo, as crenças do mundo. A koteka, que eu orgulhosamente teria como objeto decorativo no meu quarto, estava decorando o quarto do Peter por motivos opostos. Era um lembrete da superioridade da cultura ocidental cristã, de um mundo antigo que não tinha a menor chance, sozinho contra um exército de computadores macintosh.

Umas duas semanas depois do episódio da delegacia, e ainda muito perturbado com a história evangelista da família do Peter, procurei algumas informações sobre as populações da Nova Guiné. Descobri que hoje existem 65 igrejas na região, e mais de 13 mil pessoas batizadas. Mas descobri também que a distribuição de roupas ocidentais foi um retumbante fracasso. Se esqueceram os evangelistas e o governo da Nova Guiné, que as tribos não tem acesso a sabão, e que, por andarem pelados, não possuíam o hábito de lavar roupas. A situação ficou tão surreal, que houve um surto de doenças de pela causados pela reutilização ad infinitum das roupas sem lavar, até que a idéia foi abandonada. A Koteka ainda é amplamente utilizada nas florestas de Iram Jaya.

Standard

2 thoughts on “Lagenaria siceraria, uma planta formidável e seu uso mais curioso

  1. Pingback: Assassinato de reputação: a máquina de propaganda contra uma planta | o etnobotânico

Leave a comment