O milho e suas polêmicas envolvendo aminoácidos

A cada dois anos, na pacata cidade de Plymouth, no estado americano de New Hampshire, acontece a Conferência Gordon sobre Biologia Molecular de Plantas. Durante uma semana biólogos moleculares do mundo todo se isolam para cinco dias de seminários. Várias características fazem desse encontro um lugar privilegiado para falar sobre ciência: uma audiência bem pequena (no máximo 100 pessoas); um bem-vindo tempo livre a tarde e o isolamento geográfico (Plymouth de fato não oferece NENHUMA possibilidade de diversão) praticamente obrigam os cientistas a interagirem.

Eu estive nessa conferência por duas vezes. A primeira em 2008 e novamente agora em 2014. Seis anos de intervalo que mostram como a ciência mudou nesse curto período. Em 2008 os estudos com a planta modelo Arabidopsis thaliana dominavam completamente o cenário. Os trabalhos também eram menores, sobre um ou dois genes, quando muito uma via metabólica específica. Seis anos depois o volume de dados cresceu exponencialmente com a difusão de tecnologias de sequenciamento. A bioinformática dominou as apresentações na Gordon desse ano. Trabalhos com Arabidopsis continuam prevalecendo, mas já cedem uma parte considerável do espaço para a batata, o tomate e principalmente o milho.

É incrível o caminho trilhado pelo milho desde o primeiro contato dos espanhóis até se tornar a planta mais cultivada no mundo. Como toda boa história, um caminho traçado em linhas muito tortas, cheio de altos e baixos.

O milho foi uma das poucas plantas que Cristóvão Colombo citou no diário da sua primeira viagem. Ele também teria levado consigo as primeiras amostras para a Europa. Praticamente todos os cronistas do descobrimento escrevem sobre o milho nas Américas. Mas as notícias sobre o cultivo na Europa são muito esparsas. Garcilaso de la Vega, em seu Comentários reales, de 1609 escreveu que o milho era cultivado na Andaluzia; Pedro Martir de Angleria no Décadas do Novo Mundo relatou o cultivo em Milão e Oviedo, no História Natural e Geral das Índias identificou o milho em Madri.

O problema com esses relatos é que sempre existe a dúvida se eles de fato se referiam ao milho. Antes da classificação de Lineu, a identificação das plantas não era simples, e com facilidade atribuía-se a uma planta o nome que na realidade designava outra espécie. O milho, espécie nova e pouco conhecida, foi muitas vezes confundido com o sorgo. Além disso, em grande parte da Europa utilizava-se o termo “grano turco” para descrever qualquer planta de origem exótica, então nunca se sabe se era o milho a planta que se queria descrever. Essas dificuldades de terminologia fazem com que seja difícil saber até que ponto o milho já estava inserido na Europa no século XVI. A mais confiável informação sobre a difusão do milho na Europa não vem de um livro ou carta, mas sim de uma pintura. É o quadro “Alegoria do Verão”, do pintor italiano Giuseppe Arcimboldo. No quadro de 1567 ele usa uma espiga de milho como orelha de um personagem montado com uma composição de diversos vegetais. Acho interessante que a espiga esteja no lugar da orelha na pintura e acredito que não seja uma coincidência. As espigas de milho são chamadas de “ear” em inglês. A possibilidade que Arcimboldo soubesse disso aumenta a certeza de que o milho era bem difundido na Europa já na segunda metade do século XVI. Mas o indício definitivo da importância que o milho assumiu na alimentação dos europeus é fornecido pela descoberta de uma nova doença, a pelagra.

giuseppe arcimboldo    pelagra

Alegoria do Verão, o quadro do Arcimboldo que sugere que o milho já estava bem difundido na Europa em 1567, e ao lado os sintomas da pelagra

 

A pelagra (do italiano pele + agra, ou pele áspera) é uma doença grave que se manifesta primeiramente como feridas na pele, mas pode levar à demência e até a morte. Ela certamente já se manifestava na Itália desde os anos 1600, mas sua causa era ignorada. Também chamada de “mal do solstício”, ela aparecia exatamente no início do solstício da primavera. Durante os longos e rigorosos invernos, na falta de maiores recursos, a dieta baseava-se quase unicamente em milho. Com a volta da primavera, a dieta podia enriquecer-se com leite, queijo e outros produtos que reequilibravam a alimentação. Não demorou para que se fizesse relação entre a pelagra e uma alimentação baseada em milho. Era sabido que os índios do novo mundo consumiam basicamente milho ao longo de todo o ano, mas não havia nenhum relato de doenças semelhantes nas Américas, tornando difícil afirmar que o consumo de milho era a verdadeira causa da pelagra. A pelagra passou a ser sinônimo de pobreza e se tornou uma bandeira de luta entre anarquistas e outros grupos de esquerda. É o que indica a publicação na região italiana de Mântua, do jornal revolucionário Il Pellagroso, que nos anos 1880 unia grupos de esquerda que combatiam a favor dos depauperados.

Nos Estados Unidos a doença também chegou juntamente com o milho. Exatamente quando ele passa a fazer parte substancial da dieta das populações mais pobres do sul a pelagra ganha status de epidemia. Mas ainda não estava claro se ela era causada por alguma deficiência nutricional do milho, ou por algum vírus, fungo ou bactéria possivelmente presente no milho mal armazenado.

Quem começa a solucionar o mistério é o médico Norte-americano Joseph Goldberger. Trabalhando em orfanatos e hospitais psiquiátricos, ele observou que a doença acometia os internos mas nunca os médicos e enfermeiros dessas instituições. Ora, microorganismos não costumam diferenciar entre pacientes ou médicos, e isso fez com o que Goldberger passasse a confiar que a doença era causada por alguma deficiência nutricional presente no milho (médicos e enfermeiros costumavam ter dietas mais ricas que seus pacientes psiquiátricos).

Goldberger

Joseph Goldberger, que começou a desvendar a verdadeira causa da pelagra

 

Ao longo dos anos 20 ele conduziu experimentos dentro dessas instituições que só aumentaram sua certeza. Alimentou crianças e doentes mentais com dietas equilibradas e com dietas baseadas em milho, notando que quando bem alimentadas a pelagra sumia. Fez também experimentos com prisioneiros voluntários do Mississippi, que participavam como cobaias em troca do perdão (Goldberg contava com a colaboração do então governador do Mississipi Earl Brewer). Os voluntários consumiram uma dieta à base de milho, e seis dos onze participantes contraíram pelagra após cinco meses. Mesmo assim havia enorme descrença que sua hipótese estivesse certa. O que o Dr. Goldberg propunha era que para deter a doença deveria acontecer uma profunda alteração na ordem social. Os trabalhadores rurais deveriam ter acesso a outras fontes de alimento além do milho. Ele advogava uma espécie de reforma agrária.

Goldberg acabou morrendo de câncer sem ver aceita sua hipótese da carência nutricional do milho. Em parte, permanecia o argumento contrário de que populações muito pobres da América Latina viviam basicamente de milho e não apresentavam pelagra. Dois eventos no início da década de trinta, no entanto, resultaram em uma diminuição na incidência da doença. Um deles foi a contaminação das plantações de algodão americanas com o Bicudo do Algodoeiro (Anthonomus grandis), fazendo com que os produtores tivessem que diversificar a produção e que plantas destinadas a alimentação ganhassem espaço nas fazendas. Outro foi o fim da lei seca Norte Americana, que liberou pequenos agricultores a fazerem cerveja.

Finalmente percebeu-se que a pelagra era resultado da ausência de uma vitamina na alimentação, a niacina, uma das vitaminas do complexo B. Acontece que a niacina é formada a partir do aminoácido triptofano e milho é extremamente pobre em nesse aminoácido. A niacina passa a ser conhecida também como vitamina PP (Protetora da Pelagra). O consumo de cerveja de fato impede a pelagra, desde que seja cerveja artesanal, porque cervejas artesanais comumente ainda possuem restos das leveduras utilizadas na fermentação, e estas são ricas em niacina, conforme descrito no artigo de 1970 “Nutritive value and wholesomeness of fermented foods”. Cervejas industrializadas geralmente passam por processos de filtragem que retiram o levedo. Nesse caso elas não protegem mais da pelagra.

Tryptophan_metabolism

O aminoácido triptofano e as reações químicas que o transformam em Niacina, a famosa vitamina protetora da pelagra

 

Mas porque os índios da América Latina nunca tiveram problemas com a pelagra? O milho é de fato muito pobre em triptofano, mas possui quantidades razoáveis de niacitina, que é uma forma de niacina não assimilável pelo corpo humano (conjugada com açúcares e proteínas). De acordo com Carlos Alberto Bastos de Maria e Ricardo Felipe Alves Moreira, no artigo “A intrigante bioquímica da niacina – uma revisão crítica”, um tratamento alcalino do milho é capaz de remover esses açúcares e proteínas ligados à niacina. Os índios latino americanos ferviam o milho em uma mistura de água e cinzas de casca de árvore queimadas. A cinza em água forma uma solução alcalina que é capaz, durante o processo de fervura, de converter a nicitina em niacina. Esse processo recebe o nome de nixtamalização (do nauatle nextli= cinza + tamali= massa de milho), e nunca foi bem compreendido pelos pioneiros europeus na América. O milho atravessou o Atlântico e dominou a Europa, mas a nixtamalização não. Permaneceu associada aos hábitos “bárbaros” dos habitantes do novo mundo. Até hoje esse ainda é um hábito na culinária mexicana e em tribos indígenas espalhadas pela América Latina.

Muito tempo se passou e o milho se tornou a planta mais cultivada do mundo. Mas curiosamente seu consumo voltou a ser alvo de polêmica e mais uma vez um aminoácido está no cerne da questão: a glicina.

Ela é o mais simples dos aminoácidos. Está presente em grande quantidade em todas as proteínas de qualquer organismo. Na década de 70 Jonh Franz, um cientista trabalhando para a Monsanto, fez uma descoberta interessante: uma molécula bem parecida com a glicina era capaz de inibir uma importante enzima presente em plantas. Essa molécula era uma glicina com a adição de um fosfato, e por isso foi chamada de glifosato (uma contração de glicina + fosfato). A enzima inibida pelo glifosato (5-enolpiruvoil-shikimato-3-fosfato sintetase – EPSPS), só está presente em plantas e alguns micro-organismos. Ela é fundamental para a síntese de alguns aminoácidos como fenilalanina e tirosina, sem os quais a planta morre.

john_franzglifosatoroundup

Jonh Franz e sua descoberta: o glifosato

 

Mas o glifosato tem outras características interessantes: ele é facilmente degradado por bactérias presentes no solo e por isso é difícil que consiga contaminar a reservas subterrâneas de água. Além disso, o fato de que a enzima que ele inibe esteja presente somente em plantas e alguns poucos micro-organismos faz com que o glifosato seja muito mais tóxico para plantas do que para animais. Não à toa ele se tornou rapidamente o herbicida mais utilizado no mundo. A Monsanto patenteou o negócio sob o nome de Roundup, e ganhou muito dinheiro.

Por muitos anos o Roundup foi usado para conter ervas daninhas. Mas como mata qualquer planta, sempre existia a possibilidade de, ao aplicar glifosato na plantação, o agricultor acabasse matando também as plantas que ele queria proteger. As aplicações de glifosato tinham sempre que ser feitas em pequenas doses, repetidas vezes. Um processo muito caro principalmente se estivermos falando de grandes latifúndios dedicados a monocultura, onde os produtos químicos são lançados com a utilização de aviões.

Então a Monsanto criou as culturas Roundup Ready, que estavam “prontas para o glifosato”, as tão polêmicas plantas transgênicas. A ideia é muito simples: eles descobriram que alguns microrganismos possuem uma forma EPSPS resistente ao glifosato. A Monsanto isolou esse gene resistente de uma bactéria e o inseriu em milho e soja (existem outras plantas Roundup Ready, mas essas são as principais). Essas plantas passaram a ser resistente ao glifosato. Agora o agricultor pode usar glifosato para conter ervas daninhas sem medo que ele mate sua cultura. Ao invés de várias pequenas aplicações de herbicida, uma aplicação única é suficiente. No final, a utilização de sementes transgênicas promete reduzir em 30% a utilização de herbicidas. O agricultor economiza na quantidade de glifosato que tem que comprar, e também na aplicação desse glifosato.

Não preciso falar sobre a polêmica que essas plantas têm causado. Os testes de segurança alimentar conduzidos ao redor do mundo não mostraram risco ao consumo. Mas esses testes, embora sigam parâmetros internacionais, são realizados por períodos “curtos”, onde ratos são alimentados com ração contendo organismos geneticamente modificados por um período máximo de 90 dias.

Logo no início da Conferência Gordon desse ano um assunto polêmico dominou as conversas informais: a republicação do artigo de Éric Séralini, que havia sido publicado em 2012 e retirado de circulação em 2013 (Long term toxicity of a Roundup herbicide and a Roundup-tolerant genetically modified maize). Publicado em 2012 na revista Food and Chemical Toxicology, o artigo investigou se o consumo contínuo de uma certa variedade de milho geneticamente modificado era prejudicial para a saúde. Para responder a esta pergunta, ele montou uma experiência com duração de dois anos de alimentação com ratos, que é o tempo médio de vida de um rato. Testar o consumo de milho modificado por longos períodos era algo que há muito deveria ter sido feito. O problema é que boas ideias não necessariamente levam a boa ciência, e o artigo do Séralini é um caso emblemático dessa diferença.

Os pesquisadores usaram um total de 200 animais no experimento, 100 machos e 100 fêmeas. Separaram esses animais em 10 diferentes grupos com 10 machos e 10 animais fêmeas em cada grupo. Cada grupo recebeu uma dieta diferente ao longo dos dois anos. Havia 9 variações de dieta que continham milho transgênico ou glifosato na ração em diferentes concentrações, e uma dieta controle, sem qualquer alimento transgênico.

Os resultados publicados por Séralini foram chocantes: animais alimentados com milho modificado apresentavam, após dois anos, enormes tumores. As fotos mostradas no artigo eram bem impressionantes. Uma descoberta capaz de alterar totalmente a disposição de pessoas e governos em aceitar as culturas OGM.

Mas o artigo tinha muitos problemas, a começar pela escolha dos animais utilizados. Para seu estudo, Séralini usou ratos tipo “Sprague-Dawley“. Trata-se de uma estirpe de laboratório que é conhecida pela sua propensão para o desenvolvimento espontâneo de tumores (http://www.harlaneurope.com). Há publicações que mencionam tumores em 72% da população estudada entre animais do sexo feminino (Prejean e colaboradores- Spontaneous Tumors in Sprague-Dawley Rats and Swiss Mice). Entre os animais machos estes números são ligeiramente mais baixos, mas um estudo menciona mais de 86% (Suzuki e colaboradores- Spontaneous endocrine tumors in Sprague-Dawley rats). O fato de que estes animais apresentam uma propensão para o desenvolvimento de tumores espontâneos não foi mencionado por Séralini em seu artigo. Não é incomum usar Sprague-Dawley para experiências de alimentos. Eles já foram usados em vários estudos de segurança alimentar com culturas geneticamente modificadas, mas sempre seguindo protocolos de 90 dias. Em experimentos curtos, o fato de que os ratos têm uma propensão para desenvolver tumores espontâneos desempenha um papel menor. Isso no entanto muda se você usá-los para realizar estudos de dois anos. Em um experimento de longo prazo, fica difícil diferenciar entre tumores que ocorrem espontaneamente daqueles que ocorrem como consequência de comer milho geneticamente modificado. Não sou especialista em estatística, mas sei que em casos assim o número de animais por grupo tem de ser levantado de forma drástica. Com apenas 10 animais por grupo, você não pode afirmar com certeza se um tumor desenvolvido espontaneamente ou é um tumor que se desenvolveu como consequência de uma dieta específica.

Séralini não apenas usou muito poucos animais por grupo, mas também usou apenas 10 animais no grupo controle por sexo em comparação com 90 animais tratados. Deste modo, os animais de controle são menos representativos das variações naturais mencionadas anteriormente, que estão presentes na população. Com base nos cálculos de probabilidade simples, pode concluir-se que as possibilidades de encontrar tumores espontâneos no grupo de animais que comeram milho transgênico é muito maior do que a probabilidade de encontrar tumores espontâneos no grupo de controle. Este é um erro fundamental no projeto de pesquisa: há muito poucos grupos de controle em relação aos grupos tratados. Deveria haver um grupo controle para cada dieta testada.

Esses erros no “desenho experimental” já seriam suficientes para botar em xeque o artigo. Mas as próprias conclusões trazem novos problemas: os resultados mostram que houve menos mortes entre animais que comeram mais milho geneticamente modificado. Ao mesmo tempo, animais que se alimentaram com pouco milho geneticamente modificado morreram mais. Isso é bem estranho e os pesquisadores deveriam ter tomado estas observações como um aviso de que havia algo de errado com a experiência porque quando uma substância é de fato cancerígena, a mortalidade aumenta de acordo com a dose.

experimento seralini

Um exemplo das coisas estranhas que tem no artigo do Séralini: O gráfico mostra a dieta controle e três outras, com 11, 22 e 33% de milho transgênico. Em preto,animais que tiveram que ser sacrificados ao longo dos dois anos de experimento. Nas barras sombreadas, animais que morreram de câncer. Repare que animais que se alimentaram com a dieta controle e com 11% de milho geneticamente modificado morreram mais que animais que se alimentaram das dietas com 22 e 33% de milho transgênico. Muito estranho!!!!

 

Essas e outras críticas foram feitas ao artigo de Séralini, e um ano após a publicação, a revista resolveu se retratar: retirou o artigo de circulação e publicou uma carta explicitando os motivos. Nessa carta fica claro que a retratação não ocorreu por fraude no estudo. Ou seja, os dados apresentados não eram falsos ou forjados. A retratação se dava por falhas no desenho dos experimentos. Devido a essas falhas simplesmente não era possível chegar as conclusões que os autores chegaram.

A retirada do artigo de circulação foi considerada uma vitória pela “comunidade” de biólogos moleculares, e uma derrota para os “verdes”. Por isso a notícia da sua republicação em uma outra revista foi muito mal recebida. Vale dizer que não é comum que artigos retratados sejam republicados, e quando isso acontece é fundamental que eles sejam reavaliados. Mas não foi o caso dessa vez. De acordo com um comentário feito na Nature (Paper claiming GM link with tumours republished) por Henner Hollert, editor da revista que republicou o artigo, Environmental Sciences Europe, não houve uma nova rodada de revisão, revoltando a rapaziada presente na Conferência Gordon.

O físico e filósofo da ciência Paul Feyerabend é o mais polêmico cientista dos últimos anos. Seu livro Contra o Método é um soco no estômago para qualquer pessoa que gosta ou trabalha com ciência. Minha primeira reação quando li esse livro foi de raiva, que com o tempo se transformou em uma grande admiração pelas suas ideias. Entre outras coisas, ele defende que o progresso do conhecimento ocorre preferencialmente em um ambiente altamente plural. Uma sociedade onde a ciência tem um status superior a qualquer outra coisa, como religião ou crendice popular perde essa pluralidade e se torna menos propensa a avançar no conhecimento. É a pluralidade, a convivência em um mesmo tecido social de ideias absolutamente díspares, o melhor caminho para o conhecimento. Em outras palavras, a ciência não é superior a qualquer outra atividade, e precisa desesperadamente ser salva de sua própria prepotência. Eu creio ter sido salvo de minha prepotência de cientista pelo livro do Feyerabend.

Por isso fiquei muito feliz com a republicação do artigo do Séralini. A retirada desse artigo de circulação reduziu a pluralidade de pontos de vista sobre um tópico tão importante como a utilização de OGMs. Ao ser retirado de circulação, ele ganhou um status de “artigo mítico”, sobre o qual todos falavam e quase ninguém de fato leu. Estando disponível novamente, a discussão sobre os transgênicos só tem a ganhar. É preciso deixar claro que o artigo só foi republicado porque ele não era uma fraude. Os dados divulgados não foram forjados, os tumores observados e a taxa de mortalidade nos ratos foram observados de fato. O artigo peca por ter um desenho experimental infeliz que não permitiu aos pesquisadores chegar as conclusões anunciadas. Mas tanto eu quanto Feyreabend julgamos que isso não é motivo para que as pessoas não tenham mais acesso a ele. Felizmente, o corpo editorial da revista Environmental Sciences Europe concorda conosco.

FeyerabendContra o método

Paul Feyerabend e seu livro mais famoso: Contra o método

 

PS- Um bom exemplo das idéias do Feyreabend em ação é a Wikipédia. Sendo uma plataforma aberta onde qualquer pessoa pode contribuir, sempre existe a possibilidade que algum espírito de porco acesse determinado verbete e escreva bobagens. Mas a pluralidade de indivíduos que buscam informação na Wikipédia faz com que haja uma tendência à correção de erros e melhoria dos verbetes. É uma enciclopédia anarquista e muito bem-sucedida.

PS2- A nixtamalização é um desses casos onde fica evidente como a cultura humana evolui em conjunto com as plantas que selecionamos e consumimos. Como os nativos da América do Sul perceberam que a fervura com cinzas de árvore era benéfica? É possível que eles realizassem o tratamento para facilitar a retirada do pericarpo, a “pele” que envolve o grão, e que somente por acaso estivessem se beneficiando da conversão de niacitina em niacina. Mas a utilização da nixtamalização como etapa inicial de quase qualquer tratamento dado ao milho indica que eles sabiam da necessidade do processo. Eu acho essa possibilidade absolutamente impressionante.

Hoje em dia na culinária mexicana a nixtamalização é feita com a adição de óxido de cálcio (cal) à água onde se vai ferver o milho.

 

Standard

Leave a comment