Não confunda alhos com bugalhos: gente não é bicho, azinheira não é figueira

Sou de família alemã. Meus bisavós vieram da Alemanha para o Brasil no final da Primeira Guerra. Fugiam de um país arrasado, e sem saber fugiam também de uma outra guerra que estava por vir. Em 1928 (meu avô tinha 8 anos) a família fez uma viagem à Alemanha. Era hora de apresentar meu avô aos que haviam ficado na Europa. É dessa viagem a lembrança mais marcante da infância do meu avô.

Minha bisavó resolveu levá-lo ao zoológico, mas o passeio acabou abruptamente porque uma das atrações expostas era uma tribo de índios da América do Sul. Expostos como animais, na reconstituição mequetrefe de uma aldeia, cercados por grades. Minha bisavó percebeu o absurdo daquilo e caiu fora do zoológico o mais rápido possível. Meu avô lembrava vivamente do desconforto da situação, das desculpas para o fim inesperado do passeio, dos silêncios na volta pra casa. Não à toa, 5 anos depois, o Nacional Socialismo subiu ao poder e meus bisavós passaram mesmo a sentir vergonha da sua terra natal. Meu avô foi retirado da escola alemã e tudo que remetia a Alemanha era evitado.

Os chamados zoológicos humanos não eram novidade na década de 20. Já existiam e excursionavam pela Europa desde os anos 1880. Africanos, Pigmeus, Aborígenes Australianos e Índios Sul Americanos eram frequentemente expostos ao público. É difícil saber qual etnia estava exposta quando meu avô visitou o zoológico. Pode-se arriscar que era um grupo fueguino (proveniente da Terra do Fogo). Pelo menos 4 diferentes etnias fueguinas (Mapuche, Tehuelche, Kawésqar e Selk’nam) foram frequentemente capturados para virarem atração para as famílias europeias. Essa história foi recentemente resgatada por dois pesquisadores. O antropólogo britânico Peter Mason e o historiador chileno Christian Báez traçaram a saga desses grupos, desde sua caçada em terras chilenas, até seu envio para os circos e zoológicos na Europa. Seu trabalho, que se transformou no livro “Zoológicos humanos. Fotografías de fueguinos y mapuche en el Jardin d’Acclimatation en París, siglo XIX” é contundente porque mostra que essa curiosidade mórbida de ver seres humanos expostos como bicho não era exclusividade alemã. Houve exibições ao pé da torre Eiffel, em Londres, em Bruxelas… Assustadoramente, o trabalho dos investigadores deixa claro que a retirada das tribos do território chileno foi feita com a concordância do governo chileno, que autorizou a saída mesmo conhecendo as intenções dos captores.

O destino dos sequestrados era terrível. A maioria morria de sarampo ou varíola. Alguns sucumbiam com o péssimo tratamento recebido ou morriam de desnutrição. As mulheres eram frequentemente vítimas de abuso e contraíam sífilis. Eram apresentados como animais, tratados como animais e morriam como animais. Manson e Baez se juntaram ao cineasta alemão Hans Mulchi e transformaram seu livro no documentário Calafate: Zoológicos humanos. Nele aparece a cerimônia de devolução de corpos de Selk’nam que morreram na Alemanha para seus descendentes no Chile. Uma cerimônia oficial onde a Angela Merckel entrega os restos na presença da então presidente do Chile Michele Bachelet, com um pedido oficial de desculpas por parte do povo alemão. Pelo menos isso.

Os Selk’nam habitavam a Terra do Fogo milhares de anos antes da chegada dos Europeus. Viviam da caça e do extrativismo, e provavelmente não praticavam a agricultura. Com a chegada dos europeus e utilização das terras para pastagem, surgiu um conflito com os Selk’nam, que não entendiam o conceito europeu de propriedade sobre os animais e os matavam para consumo. Os europeus iniciaram uma campanha de extermínio, criaram espécies de milícias e pagavam determinada quantia para cada Selk’nam morto. De acordo com o livro de José María Borrero “La Patagonia trágica” o assassino deveria apresentar as orelhas, as mãos ou o crânio do Selk’nam e receberia o pagamento. Os governos chileno e argentino aparentemente eram cúmplices dessa barbaridade. Mesmo quando o governo do Chile resolveu encarar de frente a questão da preservação dos remanescentes, já na década de 1910, adotou uma solução muito questionável. Separou para eles uma área na Ilha de Dawson, levou os que ainda restavam para lá e entregou o controle da região a missionários Salesianos. Nenhum respeito pela cultura Selk’nam (essa história é contada, sob o ponto de vista dos Salesianos, no artigo A hundred years from the closing of Dawson mission. Reflections on an admirable and fruitless effort). Em 1974 morreu a última representante original desse povo, uma mulher chamada Ángela Loji. Com ela, desapareceu também a língua ONA, falada pelos Selk’nam. Uma consulta ao Atlas of the World’s Languages in Danger, publicado pela UNESCO coloca a língua ONA como extinta desde os anos 80.

Manson e Baez resgataram muitas fotos com os Selk’nam. E elas são incríveis. Juntamente com relatos de missionários é possível reconstruir um pouco da cultura original desse povo. As imagens mais impressionantes são de um rito de passagem chamado Hain, feito com jovens do sexo masculino, que marcava sua entrada no mundo dos adultos. De acordo com Flávia Morello, no artigo Hain, ceremonia de iniciación de los Selk’nam de Tierra del Fuego, Selk’nam mais velhos pintavam o corpo e se fantasiavam de espíritos que guiavam os jovens durante o ritual. Além das pinturas eram utilizados também máscaras e adereços feitos de cascas de árvores. De acordo com o trabalho “First archaeobotanical approach to plant use among Selknam hunter-gatherers”, os poucos objetos que ainda sobrevivem mostram que a árvore utilizada era a Quercus ilex, uma das muitas espécies de carvalho.

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As incríveis fantasias ritualísticas dos Selk’nam. As máscaras são feitas de carvalho

Esse é um uso bastante interessante para uma árvore que acompanha a humanidade desde o princípio, e com a qual os homens sempre contaram. É difícil dizer quantas espécies cabem dentro do gênero Quercus. Alguns autores dizem que são por volta de 70. Outros arriscam números bem maiores, beirando as 600 espécies. Estudos de arqueologia permitem identificar que as primeiras árvores desse gênero apareceram na terra há cerca de 10 milhões de anos atrás. Sua população crescia ou diminuía de acordo com as inúmeras variações climáticas, mas após o último período de glaciação, por volta de 16.000 AC, elas experimentaram uma grande distribuição geográfica. No holoceno, cerca de 10.000 anos atrás, o homem começou a manipular melhor as plantas, lentamente desenvolvendo a agricultura. As árvores do gênero Quercus estavam entre as primeiras a serem selecionadas por esses agricultores iniciais. É o que indica a existência de “bosques de carvalho” ao longo de vastas regiões da Europa. É curioso que esses bosques tenham sido plantados desde tão cedo na história da humanidade. Afinal, não é comum que seres humanos se alimentem do fruto do carvalho (chamado em Portugal de bolota). Mas se não são atraentes para humanos, as bolotas são muito apreciadas por porcos. Esses bosques de carvalho recebem o nome de “Montados”, e ainda hoje fazem parte da paisagem da região rural de Península Ibérica. Os montados eram destinados à alimentação dos animais e não dos humanos. Uma interessante conexão entre a domesticação de plantas e de animais.

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Um Montado de carvalho e seu fruto, as bolotas

Quando fui fazer um pedaço do meu doutorado na Suíça meu avô se ofereceu para me dar aulas de Alemão. Uma ou duas vezes por semana nos encontrávamos para que ele me ensinasse pelo menos o básico para eu me virar quando viajasse. O sistema de ensino do meu avô era simples. Nós líamos juntos um livro em Alemão e ele ia me explicando a gramática e corrigindo minha pronúncia. No final das aulas, a título de distração, ele me apresentava alguns ditados alemães. É engraçado que são dos ditados que eu mais me lembro. Tinha um que somente agora faz sentido pra mim: Auf den Eichen wachsen die besten Schinken (sob os carvalhos crescem os melhores presuntos).

Carvalhos e porcos têm uma forte ligação. Não são somente as bolotas que caem naturalmente das árvores e alimentam os animais. Carvalhos também oferecem outras iguarias aos porcos: as trufas e os bugalhos.

As trufas são fungos como os cogumelos, mas ao contrário destes, crescem debaixo da terra, mais exatamente associados a raízes secundárias de árvores. Crescer debaixo do solo torna a dispersão das trufas uma tarefa muito mais complexa que a dispersão de cogumelos. O problema é que as trufas por si mesmas não conseguem liberar os esporos que garantem sua reprodução. Elas dependem da ação de animais como o porco, que são atraídos pelo seu cheiro. Cada espécie de trufa tem a própria diversidade de aromas, quase ausentes nos espécimes imaturos, mas que intensificam e emergem assim que os esporos amadurecem. Dos milhares de tipos de trufas existentes hoje, apenas algumas dúzias agradam aos homens. O resto é pequeno ou duro demais, ou o cheiro não é notável ou mesmo repugnante. No entanto, para outros animais, são irresistíveis quando seu cheiro se eleva do solo. Quando um animal come uma trufa, a maior parte da polpa é digerida, mas os esporos sobrevivem à passagem pelo sistema digestivo e são defecados no chão, onde poderão germinar.

Os fungos que produzem trufas aptas ao consumo humano possuem grande facilidade de estabelecer associação com raízes de carvalho. Desde a década de 60 que se conhece uma maneira de inocular esses fungos diretamente em mudas de carvalho, sendo possível então cultivar trufas. Antes, elas cresciam aleatoriamente em florestas ricas em carvalho, e tinham que ser encontradas com a ajuda de porcos. O cultivo de trufas inoculadas, no entanto, sempre foi sujeito a diversas variações ambientais que dificultavam a sua transformação em um negócio lucrativo. Recentemente, no entanto, descobertas relativas à fisiologia desses fungos têm trazido bastante sucesso à essa atividade.

No Chile algumas iniciativas de cultivo de trufas inoculadas têm dado certo. Lá, a árvore escolhida para receber os inóculos foi a Quercus Ilex, a mesma que antes emprestava seus galhos para as fantasias ritualísticas dos Selk’nam. Em 2009 a primeira safra de trufas inoculadas foi obtida na região de Los Ríos pela empresa Agrobiotruf. Ainda realizado em pequena escala, esse é um mercado que tende a crescer muito (Detalhes sobre o cultivo da trufa no Chile podem ser encontrados no artigo Molecular tools for rapid and accurate detection of black truffle (Tuber melanosporum vitt.) in inoculated nursery plants and commercial plantations in Chile).

Já os bugalhos são uma resposta natural da planta à deposição de ovos de vespa ou outro inseto em seu tronco. Tem aspecto arredondado e são do tamanho de uma cabeça de alho. Um carvalho gera dezenas de frutos e dezenas de bugalhos, que caem naturalmente fazendo a alegria dos porcos. Daí surge a expressão “não confunda alhos com bugalhos”.

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Um bugalho, e um carvalho cheio de bugalhos

Se devemos ao carvalho a engorda do porco, nos garantindo o presunto, o bacon e o torresmo, devemos a ele também uma boa parte de nossa cultura alcoólica. Uma espécie de carvalho típica da península ibérica, Quercus suber, produz uma maravilha: a cortiça. Essa árvore, que vive por centenas de anos, produz uma casca grossa e esponjosa que dá origem às cada vez mais escassas rolhas. O carvalho também é a matéria prima principal na confecção de barris para o armazenamento de bebidas. As mais antigas descobertas arqueológicas mostram que desde o início da confecção de bebidas alcoólicas o carvalho era a árvore utilizada para fazer os barris (Wood identification with PCR targeting noncoding chloroplast DNA). Uma explicação para isso vem provavelmente da fisiologia do carvalho. Sua madeira é dura e resistente, mas também flexível o suficiente para permitir a curvatura dos barris. Além disso, durante o crescimento do carvalho, os tecidos vasculares da planta vão sendo substituídos conforme o tronco engrossa. Ou seja, novos vasos são feitos e os antigos deixam de ser utilizados. Nesses, acontece um interessante fenômeno chamado tilose. Células próximas ao sistema vascular da planta extravasam material para dentro dos vasos. Essa substância mineraliza e termina por fechar os vasos da planta. Isso tapa os “buracos” da madeira, tornando-a impermeável, uma característica fundamental para um barril. O que os produtores originais de bebida provavelmente não sabiam é que ao escolherem o carvalho para armazenar sua produção, estavam também trazendo novos sabores às bebidas que produziam. Carvalhos produzem uma série de substâncias que na presença de álcool se desprendem da madeira. Algumas espécies liberam principalmente taninos, outras substâncias que lembram frutas… saber que tipo de barril é mais conveniente para a bebida que se está produzindo é fundamental para a qualidade do produto final.

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Microscopia de um vaso antes e depois da formação das tiloses

As bolotas, os bugalhos, a cortiça e os barris tornaram o carvalho extremamente importante para o ser humano. Em Portugal uma das espécies mais disseminada de carvalho é exatamente a Quercus Ilex (a mesma utilizada nas fantasias ritualísticas dos Selk’nam do Chile), onde é chamada de azinheira. A azinheira é um símbolo da vida rural portuguesa, e exatamente por isso foi parte importante do movimento que derrubou o Estado Novo português.

Na noite de 25 de Abril de 1974 militares de baixa patente em Portugal sintonizavam ansiosamente a programação da Rádio Renascença. Exatamente à meia noite e vinte minutos aconteceu o que eles esperavam: tocou a canção de Zeca Afonso “Grândola Vila Morena”, que se refere à fraternidade entre os moradores de Grândola, vila do Alentejo. Era a senha combinada para que se desse início à revolução dos Cravos. A música transformou-se em símbolo da retomada da democracia em Portugal. Como diz a música, foi à sombra de uma antiga azinheira que se jurou ter como companheira a vontade popular. É um clamor pela volta da democracia.

Grândola, vila morena

Terra da fraternidade

O povo é quem mais ordena

Dentro de ti, ó cidade

Dentro de ti, ó cidade

O povo é quem mais ordena

Terra da fraternidade

Grândola, vila morena

Em cada esquina um amigo

Em cada rosto igualdade

Grândola, vila morena

Terra da fraternidade

Terra da fraternidade

Grândola, vila morena

Em cada rosto igualdade

O povo é quem mais ordena

À sombra duma azinheira

Que já não sabia a idade

Jurei ter por companheira

Grândola a tua vontade

Grândola a tua vontade

Jurei ter por companheira

À sombra duma azinheira

Que já não sabia a idade

No Brasil a banda punk paulista 365 fez uma versão da música do Zeca Afonso onde trocam “azinheira” por “figueira” de forma inexplicável. A figueira é uma árvore muito diferente da azinheira. Pertence a outro gênero (Ficus), e não tem a mesma importância da azinheira na vida rural portuguesa ou brasileira. Sua presença na versão brasileira não tem nenhum sentido.

Revolução dos cravos

Imagem clássica da Revolução dos Cravos. A azinheira também teve parte na redemocratização de Portugal

Diante de tantos usos práticos para o carvalho, é fascinante pensar nos Selk’nam e suas fantasias ritualísticas. Uma utilização simbólica do carvalho, assim como na música de Zeca Afonso, mas carregada de uma força revolucionária. As imagens da cerimônia do Hain são um testemunho da riqueza das relações entre humanidade e plantas e deviam ser vistas com muito mais admiração que estranheza. É curioso que um povo que não entendia o conceito de propriedade tenha feito a mais bonita apropriação do carvalho, de tal forma que quando penso nessa árvore a primeira coisa que me vem à cabeça são as máscaras Selk’nam. Antes das trufas, das bebidas, dos porcos e do bacon. Antes até da Revolução dos Cravos.

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