Feijão de Calabar e Trombeta: a utilização de plantas em julgamentos

A cidade de Gent foi muito importante economicamente devido a seu porto. As mercadorias chegavam ao cais e eram distribuídas pela extensa rede de canais que cortam a cidade e a conectam ao resto da Bélgica. Ainda hoje é possível atestar o que foi a riqueza dessa região durante a idade média e Gent é considerada por muitos a pérola da Flandres em termos de valor arquitetônico e artístico.

Gravensteen, o Castelo de Gent, foi construído pelos condes de Flandres no século XII para defender a cidade, exatamente ao lado do antigo porto. Com o tempo, o porto de Gent foi perdendo importância para outros portos da Europa e embora ele ainda esteja ativo (ele só mudou de lugar, sendo deslocado para uma região menos central da cidade), a economia da cidade hoje gira em torno da Universidade. Apesar de ainda manter muitas de suas características medievais, nada é mais marcante desse passado do que o Castelo encravado no meio da cidade. Uma visita ao Castelo é programa obrigatório para quem vem conhecer Gent. Ali, protegido por suas muralhas, funciona o museu da tortura, onde pode-se observar como funcionavam os castigos para os prisioneiros na idade média. Entre armas, armaduras e instrumentos de tortura, a jóia da coleção é sem dúvida uma guilhotina original, que de acordo com a lenda, teve bastante uso na virada entre os séculos XVIII e XIX.

A guilhotina era considerada um método de execução mais humano do que o enforcamento ou a decapitação com machado porque a morte era instantânea. Era comum que enforcados ficassem se debatendo em praça pública por muitos minutos, ou que o carrasco responsável pela machadada no condenado não acertasse em cheio sua primeira tentativa. Em ambos os casos o condenado ficava agonizando. Um espetáculo nem um pouco agradável! A guilhotina permitia também a aplicação de uma antiga regra que trazia à execução um elemento de benevolência: caso o equipamento falhasse, entendia-se que a condenação não havia sido justa, e que Deus estava intervindo para salvar a vida de um inocente. A guilhotina portanto não era somente uma maneira eficaz e limpa de matar, mas também trazia um certo consolo à mente dos algozes, porque no final havia sempre a chance de Deus intervir para corrigir possíveis mal entendidos.

Esse princípio, de colocar a sentença final na conta de Deus, recebe o nome de ordálio e é tão antigo que está descrito no Código de Hamurabi, datado de aproximadamente 1700 AC. No artigo dois do código está um exemplo do princípio jurídico do ordálio, nome dado ao julgamento divino:

Se alguém acusar um homem e o acusado mergulhar em um rio e afundar, quem o acusa pode tomar posse de sua casa. Mas se o rio provar que o acusado é inocente e ele escapar ileso, então quem o acusa será executado, e o acusado tomará sua casa“.

Portanto, na impossibilidade de se provar uma acusação, deixemos que Deus cedida. Afinal, ele tudo vê e tudo sabe. Curiosamente, esse princípio jurídico foi mais comum do que se pode supor, tendo sido encontrado em diversas culturas muito distantes entre si. William Freeman Daniell, que era médico cirurgião a serviço do exército Inglês, além de botânico amador, reconheceu a existência do ordálio entre as populações da Gâmbia (atual Gana) e Serra Leoa por volta de 1850. Ele descreveu que um tipo de feijão, chamado de feijão de Calabar, era utilizado em “testes” para determinar a culpa ou inocência de um indivíduo. Os grãos eram esmagados e embebidos em água, e o prisioneiro obrigado a beber o elixir. Se ele morresse era culpado, mas se vomitasse, expelindo o veneno e sobrevivesse (o que era bastante raro), era automaticamente libertado.

O feijão de Calabar (Physostigma venenosum) recebe esse nome porque cresce em quantidade na região do delta do rio Calabar, na Nigéria. É uma trepadeira que carrega em suas sementes um alcalóide chamado fisostigmina, a substância responsável pelo “julgamento”. Ela age no sistema nervoso, inibindo a enzima acetil-colinesterase. A acetilcolina é um neurotransmissor liberado pelos neurônios durante um impulso nervoso. Sua liberação por um neurônio ativa o neurônio seguinte, que libera mais acetilcolina, ativando o neurônio seguinte, e assim sucessivamente, em uma reação em cadeia. Acontece que ela tem que ser rapidamente retirada do espaço entre os neurônios, de forma a permitir que um novo impulso nervoso seja transmitido. A retirada eficaz da acetilcolina é feita, em grande parte, por essa enzima, a acetilcolinesterase. Se ela for inibida, a comunicação entre os nervos e os músculos fica comprometida. O indivíduo tem convulsões, perde o controle sobre o esfíncter e a bexiga, e eventualmente também sobre a respiração, morrendo por asfixia.    

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O feijão do Calabar e a fisostigmina.

O Instituto de Biotecnologia de Flanders (VIB) possui diversos campi na Bélgica. Eu trabalho no departamento de biotecnologia de plantas, mas existem diversos outros departamentos dedicados à outras áreas de investigação. Uma vez por ano existe um evento que reúne todos os departamentos do VIB. É uma forma de incentivar a troca de informações entre áreas de pesquisa tão distintas. Em um desses eventos acabei jantando em uma mesa com um posdoc que trabalha estudando câncer. Quando soube que eu trabalhava com plantas, e que era da América do Sul, ele me perguntou se eu conhecia a árvore borrachero. Um primo seu, em uma viagem de trabalho à Colômbia tinha sido assaltado com o uso da “burundanga”.

De fato eu conheço essa árvore, assim como conheço a fama dessa droga, burundanga, considerada uma das mais perigosas do mundo. Seu nome oficial é escopolamina. A árvore da onde é extraída, a tal borrachero, recebe no Brasil o nome de trombeteira, ou árvore de trombeta (Datura stramonium). O primo do meu colega havia sido dopado com algumas gotas de um chá feito com a trombeta, as flores da árvore borrachero. Sob o efeito da droga a pessoa entra em um estado de passividade e complacência. Entrega senhas de banco, de cartões de crédito, a localização de jóias e outras coisas valiosas. Além disso, após o fim do efeito, é incapaz de se lembrar do que aconteceu. Esse golpe é cada vez mais comum na Colômbia, e se assemelha bastante ao “boa noite cinderela” aplicado em noitadas no Brasil. A diferença é que a droga utilizada é mais perigosa, e sua obtenção é extremamente fácil.

A escopolamina foi sintetizada pela primeira vez na Alemanha na década de 1890, como parte de um estudo de plantas com efeitos terapêuticos. A trombeteira era conhecida por seus poderes psicotrópicos, e o primeiro uso farmacêutico da nova substância foi como anestésico. A escopolamina misturada à morfina era administrada a mulheres durante o parto, como forma de gerar o chamado “sono crepuscular”. Esse tratamento foi popularizado no início do século XX. Até então o clorofórmio era aplicado como anestésico durante partos o que resultava frequentemente em morte. A combinação da escopolamina com a morfina tornou-se bastante popular como substituto para o clorofórmio. Em teoria a morfina criava uma forte analgesia, enquanto a escopolamina causava amnésia. O resultado final era que as mulheres não apenas não sentiam dor, como sequer lembravam do procedimento do parto. Alguns médicos chegaram a prever que a administração da nova droga faria com que o trauma do parto ficasse para trás, aumentando as taxas de natalidade no mundo.

O obstetra Robert House estava entre os milhares de médicos que aplicavam o “sono crepuscular” no início do século XX. Ele seguia as normas de aplicação da droga, fazendo um “teste de memória” para calibrar a dosagem. A eficácia da escopolamina era calibrada através da sua capacidade de apagar a memória. Um objeto era mostrado à parturiente antes de receber o medicamento, e em seguida, após cada pequena aplicação, mostrado novamente. A dose correta tinha sido atingida quando a mulher já não fosse mais capaz de identificar o objeto. Ao fim de um parto que fazia em 1916 o Dr. House perguntou ao marido de uma paciente onde estava a balança para que ele pudesse pesar o bebê. Diante da impossibilidade do marido encontrar a balança, a mulher, ainda profundamente mergulhada no sono crepuscular, deu instruções precisas de onde ela estava guardada. O médico ficou tão impressionado com o fato de que mesmo profundamente inconsciente a mulher ainda era capaz de responder a perguntas, que ele decidiu fazer mais testes. Os resultados convenceram o obstetra que a escopolamina poderia “fazer alguém dizer a verdade sobre qualquer questão“. Nascia o soro da verdade.

A noção de uma relação entre as drogas e honestidade é antiga. Não se sabe de quando exatamente é o provérbio “in vino veritas”, mas Plínio faz referência a ele no Naturalis Historia, ao dizer que “volgoque veritas iam attributa vino est” (a verdade agora é atribuída ao vinho). No século XIX essa crença assumiu uma forma muito mais elaborada. Novidades como o esfingmomanometro (o aparelho para se medir a pressão arterial), juntamente com a criação da nova ciência da psicologia social davam a sociedade a noção de que era possível medir e interpretar as reações fisiológicas. O soro da verdade era a mais nova e promissora ferramenta da ciência para desvendar crimes.

Nos anos seguintes o soro chegou a ser utilizado em alguns tribunais dos Estados Unidos, com resultados controversos. Havia uma impressão de que de fato pessoas sob o efeito da escopolamina tinham uma tendência a falar a verdade. Alguns interrogatórios sob o efeito da droga resultaram em confissões que depois eram comprovadas pela investigação policial. Mas em outras ocasiões pessoas confessavam quando sob o efeito da droga e voltavam atrás quando estavam conscientes. Em um caso de sequestro e assassinato que ficou famoso, um motorista confessou quando estava dopado, em seguida, retirou sua confissão quando estava sóbrio e mais tarde, em uma segunda entrevista sob o efeito da escopolamina, voltou a negar participação nos crimes. De fato, nesse caso a polícia encontrou, prendeu e condenou outra pessoa pelo sequestro. Com o tempo a prática polêmica foi abandonada, em parte devido a inconstância dos resultados, em parte porque violava o princípio constitucional de que ninguém deve ser obrigado a gerar provas contra si mesmo.

A escopolamina possui efeito contrário à fisostigmina. Enquanto esta é uma droga colinérgica, porque aumenta a quantidade de acetilcolina entre os neurônios, a escopolamina é uma droga anticolinérgica. Ela inibe o funcionamento dos receptores de acetilcolina. Ou seja, por mais que o neurotransmissor tenha sido liberado por um neurônio, os receptores do neurônio seguinte que deveriam perceber a presença da acetilcolina ficam incapacitados de fazê-lo. Os efeitos no sistema nervoso central levam a um processo alucinatório, podendo durar de um a três dias. O coração bate mais rápido, a pele fica seca e avermelhada, ocorre retenção urinária e do intestino, além de aumento de temperatura. Dependendo da quantidade da droga podem ocorrer ataques convulsivos e até morte.

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Trombeta e escopolamina.

Essas duas plantas produzem drogas com efeitos contrários que foram utilizadas, de maneiras e em épocas distintas, em julgamentos. A escopolamina como forma de desvendar crimes, e a fisostigmina como forma de esclarecer a vontade divina. Usos polêmicos e que ficaram obsoletos, dando lugar à aplicações mais modernas. A fisostigmina é utilizada hoje em diversos colírios, especialmente para o tratamento de glaucoma. Os colírios que possuem fisostigmina frequentemente causam efeitos colaterais como alucinações e sua manipulação tem que ser muito cuidadosa. Já a escopolamina é utilizada como antiespasmódico, principalmente em casos de úlceras e cólicas. Ela é modificada em laboratório e passa a ser butilbrometo de escopolamina. Essa modificação faz com que o fármaco não consiga passar pela barreira hematoencefálica, a estrutura que filtra o sangue que entra em contato com o sistema nervoso central. Dessa forma sua atuação fica restrita ao sistema digestivo, chegando em baixíssimas quantidades ao cérebro. É o famoso remédio Buscopan.

PS- Quando trabalhei no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, passava todo dia por uma trombeteira. Na verdade, o exemplar do Jardim Botânico do Rio não é uma Datura strammonium, mas sim outra planta, chamada Brugmansia suaveolens. As duas são muito parecidas e inclusive foram inicialmente classificadas como uma só, por Lineu em 1753. Somente em 1973 elas foram definitivamente separadas baseado em pequenas diferenças morfológicas, e colocadas em gêneros diferentes. De qualquer forma, as duas plantas podem ser utilizadas para extração da escopolamina.

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