Sobre roubos e encontros: o amendoim no caminho Peabiru

No dia 2 de fevereiro de 2012 um tipo muito curioso de roubo aconteceu no Instituto de Botânica da USP, na zona sul de São Paulo. Depois de almoçarem no refeitório do Instituto e fazerem consultas no acervo da biblioteca, cinco pessoas anunciaram o assalto. Renderam os seguranças e bibliotecários e levaram onze volumes da obra Flora Fluminensis; cinco de Sertum Palmarum Brasileinsiun; dois de Le Bambusées; além de exemplares de Graminium Genera, Herbarium Amboinense, Plantarum Brasiliae e Flora Brasilica. Uma ação cinematográfica para roubar livros raros de botânica (alguns deles com valor estipulado de 60.000 reais) não é algo que se vê toda hora.

Eu acompanhei com muito interesse o desenrolar desse caso e não havia um único dia durante algumas semanas, que eu não buscasse notícias sobre as investigações. O evento acabou servindo para que eu conhecesse os livros. Por trás da sordidez de um assalto à mão armada contra o patrimônio botânico nacional, que pelo menos eu aumentasse minha cultura botânica.

Em fevereiro de 1987 um grupo de huaqueros (como são conhecidos os ladrões de túmulos nos Andes), procurava tesouros enterrados de civilizações antigas próximo à vila peruana de Sipán. Nem o caçador de relíquias mais otimista, no entanto, poderia esperar encontrar relíquias tão valiosas quanto à que eles acharam. Um dos ladrões acessou uma câmara repleta de ornamentos de ouro e prata e em menos de 24 horas as relíquias já estavam nas mãos de atravessadores que sabiam para quem vender o material.

Quando os habitantes de Sipán e de vilarejos vizinhos ficaram sabendo do volume de dinheiro obtido com o roubo, deu-se início a uma onda de novos huaqueros buscando um sucesso semelhante às custas dos tesouros arqueológicos. O estrago seria ainda pior se o arqueólogo peruano Walter Alva não percebesse o que estava acontecendo e mobilizasse as autoridades para impedir a ação dos assaltantes de sítios arqueológicos. Alva foi a primeira pessoa a perceber a importância daquele lugar e conseguiu levantar dinheiro para cercar o sítio arqueológico e protegê-lo dos assaltantes.

Muitas pessoas pensam nos Incas como a civilização nativa da América espanhola, mas eles não são, nem de longe, os primeiros habitantes dessa região. Acredita-se que a civilização Inca surgiu por volta o ano 1100 DC e devido a impressionantes níveis de desenvolvimento, tenham dominado sistematicamente os povos que os precederam, sendo destituídos apenas pela chegada dos espanhóis no século XVI.

Antes do surgimento dos Incas, o território andino era dividido entre diferentes etnias. De acordo com o arqueólogo Julio Tello, conhecido como o “pai da arqueologia peruana”, as terras altas dos Andes, por volta do ano 200 DC eram dominadas pelo povo Tiahuanaco, enquanto a região litorânea era dominada por duas etnias distintas. Na costa norte, reinavam o povo Moche e na costa sul, a cultura Nazca.

O sítio saqueado pelos huaqueros foi identificado por Alva como um importante centro Moche de cerca de 1500 anos, mais especificamente um local ritualístico dedicado à realização de enterros de membros da elite Moche, o que fica claro devido à riqueza dos bens encontrados dentro das sepulturas.

Uma delas, que Alva identificou como a sepultura de um importante sacerdote Moche, possuía uma ornamentação riquíssima e bastante preservada. Uma mulher jovem e uma lhama acompanhavam o sacerdote na tumba, juntamente com muitas peças de ouro, prata, pedras preciosas e têxteis. Foi achado um cocar feito com penas de flamingo, que só poderia ter sido importado do Chile. É possivelmente a tumba mais rica já encontrada na América do Sul e sobre ela Alva escreveu o artigo Discovering the New World’s Richest Unlooted Tomb, publicado na National Geographic em 1988. Nessa tumba Alva encontrou somente um objeto que representa um alimento: um colar formado pela união de peças de outro e prata com o formato de sementes de amendoim (Arachis hypogaea) estava no pescoço do sacerdote.

amendoim

O incrível colar de ouro e prata encontrado pelo arqueólogo Walter Alva na tumba de um sacerdote Moche.

 

Esse achado deixa clara a importância que o amendoim tinha para a cultura Moche. Uma relação que se iniciou muitos anos antes, uma vez que os primeiros achados arqueológicos envolvendo o amendoim datam de 3800 anos atrás e foram encontrados em escavações arqueológicas na costa peruana. Era a planta ideal para os povos pré-colombianos: suas sementes são ricas em proteínas e em óleos, crescem debaixo da terra, protegidas de temperaturas e ventos extremos (de acordo com o Novo Dicionário da Língua Portuguesa, o termo “amendoim” é derivado da palavra tupi mãdu’bi, que significa “enterrado”). Além disso, o amendoim pode ser consumido cru, uma característica que deve ter sido determinante para seu sucesso, porque em tempos pré-históricos, quando ainda não se conhecia a técnica de produzir cerâmica e ainda não se dominava o fogo (ambos fundamentais para o cozimento de alimentos) ele permanecia como uma excelente opção de alimento.

O amendoim pertence ao gênero Arachis, que engloba 80 espécies. Dessas, 63 ocorrem (e 46 são exclusivas) do Brasil. O botânico e médico alemão Johann Baptist Emanuel Pohl, autor de um dos livros roubados da biblioteca da USP (Plantarum Brasiliae) é um dos precursores da etnobotânica. Ele estabeleceu as bases para a identificação de sítios de domesticação, determinando que o local provável de domesticação de uma espécie é onde ela apresenta a maior variedade. Não à toa, Pohl indica o Brasil como lugar mais provável de domesticação do amendoim.

Outra das obras roubadas, Flora Brasílica é uma série de livros publicados pela Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo entre 1940 e 1955. A ideia da coleção era atualizar e ampliar a coleção Flora Brasiliensis, escrita por Von Martius e publicada meio século antes na Europa. Foi planejada e iniciada por Frederico Carlos Hoehne, diretor do departamento de botânica de São Paulo e dedica um volume inteiro ao amendoim, onde também defende que o Brasil é lugar com a maior possibilidade de ter ocorrido a domesticação.

Embora essas duas obras de peso indiquem o Brasil como centro da domesticação, essa questão sempre gerou muita controvérsia. Se é no Brasil que se encontra a maior diversidade, a espécie que se parece mais com o amendoim comercial é original da Argentina e isso lança dúvidas sobre o local exato onde a domesticação ocorreu. Além disso muitos pesquisadores defendem a hipótese de que não exista um ancestral único do amendoim comercial e que ele foi o resultado de múltiplos cruzamentos entre espécies distintas.

O amendoim comercial possui 40 cromossomos, enquanto a maior parte das espécies selvagens possui a metade disso, 20 cromossomos. Assim, a domesticação necessariamente passou por uma etapa de duplicação do conteúdo genético. Uma das perguntas mais intrigantes para quem trabalha com desenvolvimento de plantas, é porque existem tantas espécies que sofreram processos de duplicação do conteúdo genético. Especialmente entre as plantas cultivadas, a maioria das espécies têm números cromossômicos elevados. Ciclos de duplicação do genoma podem acontecer naturalmente como resultado de alguma mutação e têm sido documentados em diferentes cultivos, incluindo milho, soja, algodão e muitos cereais importantes. O papel desse processo não é totalmente claro mas parece apresentar pelo menos uma vantagem para o vegetal: o artigo Polyploidy and self-fertilization in flowering plants indica que plantas com genoma duplicado tem uma capacidade maior de fazer autopolinização.

Uma planta que está fazendo fertilização cruzada, recebendo pólen de uma planta vizinha, por exemplo, está “jogando na loteria” porque está arriscando a fusão de seus genes com um material genético de uma planta “desconhecida”. Já plantas que fazem autofertilização sabem muito bem a procedência dos genes com os quais está reproduzindo, já que é o seu próprio material genético. Como essa planta está em fase reprodutiva, existe um alto grau de certeza que a prole terá condições de chegar também à fase reprodutiva e a espécie se perpetua.

Em um contexto evolutivo, a autofertilização também pode apresentar desvantagens. Caso o indivíduo esteja em um ambiente em constante alteração, com novas pressões evolutivas surgindo a cada momento, a diversidade genética é fundamental para que o indivíduo consiga se adaptar às novas situações que o ambiente está impondo. Nesse contexto, dificultar a mistura de coleções genéticas pode ser bastante prejudicial porque diminui a variabilidade genética dentro da população. Mas estamos falando do amendoim, uma planta que estava sendo cultivada pelos nativos da América do Sul, mesmo que de forma ainda rudimentar. É uma planta que está sob acompanhamento de alguma população humana e o agricultor tenta reproduzir sempre as condições que lhe garantiram uma boa colheita anteriormente. Em um ambiente assim, as mudanças são limitadas.

De fato, o amendoim domesticado é capaz de se autofertilizar. A mutação genética que duplicou seu genoma garantiu uma padronização da colheita que deve ter sido muito bem-vinda para os nativos. Resultou num produto sobre o qual eles passaram a atuar, selecionando as características de cor, sabor, tamanho e produtividade que mais os interessava. As características desejadas podiam aparecer naturalmente, através de alguma mutação aleatória mas também podiam ser fruto de cruzamentos com outras variedades. Nesse ponto, facilitar os encontros entre diferentes variedades de amendoim (selvagens ou em processo de domesticação) pode ter acelerado a obtenção do amendoim comercial moderno.

Todo o período do Brasil Colônia foi marcado pela rivalidade entre portugueses e espanhóis, que mesmo após dividirem o Novo Mundo através do Tratado de Tordesilhas, ainda buscavam maneiras de obter recursos no território vizinho. Isso era ainda mais importante pelo lado dos portugueses, porque, ao encontrarem inicialmente no território brasileiro principalmente riquezas vegetais como o pau-brasil, invejavam os relatos de que havia de ouro e prata no território espanhol. A coroa portuguesa se empenhou ao máximo em descobrir caminhos secretos que lhe permitissem atravessar o continente virgem até chegar aos Andes.

A principal dessas rotas foi o caminho Peabiru, uma via que ligava Cusco, no Peru (embora talvez se estendesse até o Oceano Pacífico), ao litoral brasileiro. Estendendo-se por cerca de 3.000 quilômetros, atravessando os territórios de Peru, Bolívia, Paraguai e Brasil, o caminho passava pelas regiões das atuais cidades de Assunção, Foz do Iguaçu, Curitiba, Botucatu, Sorocaba e São Paulo, até chegar a Capitania de São Vicente. Ainda havia outros ramos do caminho que terminavam onde hoje é a cidade de Florianópolis.

Atraídos pelos relatos sobre as riquezas existentes nos reinos à oeste, que atiçavam a cobiça dos portugueses, não tardou até que os primeiros aventureiros se lançassem em viagens pelo interior do Brasil. A primeira expedição que buscou percorrer o Peabiru provavelmente foi a do português Aleixo Garcia, que partindo de Santa Catarina com dois mil índios, teria utilizado o caminho para atravessar o sertão, seguindo até os Andes. Ele teria chegado ao local onde hoje é a cidade de Sucre, na Bolívia, em 1524, oito anos antes do desembarque de Francisco Pizarro e da conquista do Peru.

Em 1530 Martim Afonso de Sousa partiu de Portugal em uma missão com diversos objetivos: combater os traficantes franceses que cismavam em desrespeitar a posse da Coroa Portuguesa sobre o novo território, reforçar o povoamento do Brasil fundando novas cidades ou fortificações e ir em busca dos tesouros andinos, justamente usando os lendários caminhos pela mata. Já em 1531, antes de fundar a primeira vila da América, São Vicente, Martim Afonso organizou uma expedição e enviou como comandante seu subordinado Pero Lobo. Mesmo após fundar a cidade de Curitiba, a expedição teve um final trágico: durante a travessia do Rio Paraná foi dizimada pelos índios Guaranis.

Em 1542, o espanhol Alvar Núñez Cabeza de Vaca embrenhou-se pelos caminhos da mata e acabou por descobrir as Cataratas do Iguaçu. Durante todo o século XVI foram constantes os relatos de viagens pelo interior das matas rumo aos Andes. Johan Ferdinando (1549), os companheiros de Hans Staden (1551), o jesuíta Leonardo Nunes, Brás Cubas, Luís Martins (todos em 1552) e o alemão Ulrich Schmidel (1553) foram alguns que exploraram o Peabiru em maior ou menor extensão.

Existe muito mistério sobre quem teria criado o caminho. Alguns estudiosos acreditam que ele tenha sido uma obra dos Incas, que talvez tenham visado o alargamento de seu grande império. Alguns estudos levam a crer que o Peabiru poderia ser inclusive pré-incaico, fruto de épocas ainda mais remotas. Mas há quem acredite que ele seja obra dos nossos próprios indígenas, principalmente os tupis-guaranis, que buscavam a lendária “terra sem mal” que acreditavam existir na direção dos Andes.

O termo Peabiru tem origem tupi-guarani (“pe”- caminho; “abiru”- gramado amassado) e o próprio significado do nome depõem a favor da origem incaica da estrada porque as estradas incas eram semeadas com certas gramíneas selecionadas que impediam o surgimento de outras plantas. Assim, a presença dessa vegetação em muitos trechos do caminho fugiria dos costumes dos índios que habitavam o território brasileiro à época do descobrimento. Um dos primeiros escritores nativos das Américas, Rui Díaz de Guzmán, que escreveu em 1573 Uma Historia da Argentina, dá outra versão que também sustenta uma origem incaica para o caminho. De acordo com ele os Incas se referiam ao seu território como Biru, e portanto, Peabiru seria “caminho que leva ao Biru”. Essa seria a provável origem do nome dado ao Peru. Independente de quem o construiu, o Peabiru parece ter sido uma rota bastante movimentada ligando os oceanos Atlântico e Pacífico, utilizado para conquistas, explorações e principalmente comércio entre os povos andinos e os índios brasileiros.

Esse intenso tráfico através do Peabiru pode ter favorecido muito a troca de plantas entre essas civilizações. O amendoim é pequeno e não estraga fácil suportando longos trajetos sem qualquer cuidado especial no transporte, além de ser muito nutritivo. Isso faz dele uma planta fundamental para quem quer se locomover por longas distâncias. Por isso, estudar a história do amendoim é também estudar a história das migrações humanas, especialmente na América do Sul.

De fato, é comum que se encontre populações de diferentes espécies de Arachis junto à sítios arqueológicos e o próprio Flora Brasílica, surrupiado em São Paulo, descreve a presença de Arachis stenosperme, uma variedade selvagem, junto à sítios arqueológicos em São Paulo. O pesquisador da Embrapa José Francisco M. Valls, destaca que diversas populações do gênero Arachis têm sido coletadas próximo a sítios arqueológicos que acompanham em geral o suposto traçado do Peabiru.

Assim, a existência de uma rota de comunicação cruzando desde a costa brasileira até o território Inca fez com que houvesse uma intensa troca de sementes entre essas regiões. Isso reforça a hipótese de que, ao longo dos anos, diferentes espécies selvagens de amendoim fossem levadas para regiões fora de sua ocorrência natural, proporcionando a chance de que espécies que naturalmente não habitavam o mesmo ambiente se encontrassem e eventualmente cruzassem. Esses cruzamentos entre plantas de diversas origens geraram novas espécies de amendoim, que foram selecionadas pelos nativos de acordo com as características que lhes interessavam. O caminho Peabiru, muito mais do que unir territórios tão distantes e cruzar um continente inteiro, também proporcionou os encontros que parecem explicar o surgimento do amendoim comercial moderno.

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Mapa do caminho Peabiru com suas duas prováveis rotas, partindo de São Vicente e de Florianópolis.

 

PS- Outras plantas foram trocadas ao longo do caminho Peabiru. O trabalho Evidence of Maize exploitation around an ancient crossroad linking different aboriginal American Civilizations examinou a relação genética existente entre variedades de milho moderno e outras arqueológicas (incluindo amostras recolhidas na rota do Peabiru). As sequências de DNA derivadas do Peabiru possuíam características típicas de milho dos Andes, sugerindo uma troca de sementes de milho ao longo desse caminho histórico entre populações andinas e nativos Guaranis.

PS2- O roubo dos livros do Instituto de Botânica da USP durou exatamente dois meses. No dia 2 de abril de 2012 a polícia conseguiu recuperar todos os exemplares, quando a quadrilha tentava passar os livros para os compradores.

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