Est omen in nomen (o destino está no nome)

Moacyr Scliar manteve durante anos uma coluna no jornal Zero Hora, onde, entre outras coisas, colecionava “nomes que condicionam destinos”. Ali ele dava exemplos de pessoas cujo nome, por coincidência, tem relação com suas profissões. Lembro de um Sérgio Fiscal, que é advogado tributarista, Giane Portal, uma webdesigner, e o incrível Dr. John Colapinto, norte-americano que escreveu um livro contando a história de um menino que sofreu uma lesão peniana. Como Scliar morreu em 2011, esse importante trabalho investigativo continua hoje com o José Simão. Eu também gosto do tema e aproveito esse texto para dar minha contribuição.

A história dos morangos é bem antiga, remontando às civilizações romana e grega. No entanto, não eram morangos como conhecemos, mas sim morangos silvestres (Fragaria vesca), menos doces e menores dos que consumimos hoje. Eles não possuíam uma grande importância na alimentação e talvez por isso seja difícil encontrar referências ao morango em textos clássicos. Theophrasto, Hipocrates e Dioscorides não mencionam o morango em nenhum dos seus escritos. Virgílio e Ovídio citam o morango em alguns de seus versos, mas nunca dão muita ênfase a ele, sempre mencionando os morangos junto com outras frutas. No livro de número 21 do Naturalis Historia, Plínio lista a “fraga”, como um dos produtos típicos da Itália. Ele foi o último escritor conhecido que citou o morango durante muitos séculos.

Por volta do século XIII ocorriam na França as primeiras tentativas de levar os morangos silvestres para o ambiente controlado de um jardim. A intenção dos primeiros agricultores era a aplicação ornamental do morango, muito mais do que sua utilização na alimentação. Nessa época o morango ganha um grande patrono: o Rei Carlos V. Encantado pela fruta, em 1368 ele ordenou ao seu jardineiro que plantasse morangos nos jardins reais do Louvre, popularizando o morango.

No final dos anos 1300, um novo espírito parecia dominar lentamente a Europa. Nas artes, isso se refletia em uma maneira mais leve, livre e natural de representação. Emile Mâle, em sua extensa pesquisa sobre a arte gótica, chama esse processo de “nascimento da ternura humana” e sugere que ele se iniciou com São Francisco de Assis. Em seu amor por todos os seres vivos, São Francisco teria disseminado a devoção pela natureza e a necessidade de retratá-la.

Nessa época os monges adornavam seus livros de orações com pinturas e ilustrações, ora nas margens das páginas, ora nos rodapés, chamadas miniaturas. Não à toa, no final do século XIV surgem cada vez mais miniaturas voltadas para a natureza. Muitas vezes são desenhos avulsos de frutas nas margens das páginas, e chama atenção a quantidade de vezes que encontramos desenhos de morangos. Em uma miniatura feita por volta do ano 1400 nós vemos um morango nas mãos de José, que o oferece ao menino Jesus. Em outra, Maria e Jesus estão em uma paisagem rural, enquanto anjos trazem morangos para Jesus. É provável que os monges tenham começado a desenhar morangos simplesmente por sua incrível aparência, já que morangos são de fato uma fruta muito distinta. A cor, o formato de coração e o fato de ser a única fruta que possui sementes do lado de fora não poderiam passar despercebidos. Mas não podemos descartar a possibilidade de que eles também estavam tentando agradar Carlos V, que além de admirador de morangos era um conhecido patrono dos miniaturistas.

Algumas miniaturas medievais, presentes em livros de oração. O morango é frequentemente encontrado nessas miniaturas. Talvez por seu formato, sua cor, ou simplesmente porque o rei Carlos V era um grande patrono dos miniaturistas.

 

Havia um grande intercâmbio de produtos entre os mosteiros nessa época e não demorou até que a moda dos morangos alcançasse a Alemanha, Bélgica, Holanda e Inglaterra. Em pelo menos três pinturas alemãs dos anos 1300 o morango desempenha um papel importante: “A Madonna das Rosas”, “O Jardim do Paraíso” e “Madonna entre os morangos”. Bosch também usou o morango como tema de uma de suas pinturas mais complexas: “O Jardim das Delícias Terrenas”. Na parte de baixo do painel central, um grupo de três pessoas nuas se debruçam sobre um morango enorme e parecem se alimentar dele. Não existem dúvidas, portanto, que morangos silvestres eram parte da vida da Europa medieval. Quando os conquistadores chegaram às Américas também encontraram o morango selvagem, que crescia ao nível do mar na costa do Oceano Pacífico, e por vezes subia pela cordilheira dos Andes até 2000 metros de altitude.

bosch

O Jardim das Delícias Terrenas, de Hieronymus Bosch, pintado entre 1503 e 1515. Na parte de baixo do painel central, três pessoas parecem se alimentar de um enorme morango.

 

Em 1551, depois de 15 anos de tentativas frustradas de conquista do território onde hoje é o Chile, Pedro de Valdivia, nomeado por Francisco Pizarro comandante supremo das tropas espanholas em Cuzco, consegue penetrar na região central do Chile, onde vivia o povo Mapuche. Após uma luta sangrenta, os Espanhóis finalmente tomam posse de uma terra há muito desejada. Entre os despojos da guerra eles listam um tipo de morango muito maior do que os que haviam na Europa. A nova variedade é transportada até Cuzco. Garcilazo de la Vega a descreve em seu livro “Commentarios Reales de los Incas”, dizendo que chegou a Cuzco em 1557 um fruto agradável, com sementes pequenas em sua superfície e com polpa em formato de coração. Incapaz de dar um nome peruano à fruta, ele a chama de Chili. Era a espécie Fragaria chiloensis, domesticada a partir dos morangos silvestres pela tribo Mapuche. Esse povo sabia que tinha obtido uma variedade melhorada a partir do cultivar original, tanto que tinha palavras distintas para descrever os diferentes morangos; a variedade selvagem era llahuen, enquanto a melhorada era chamada quellghen. O Chili, nomeado por Garcilaso de La veja, receberia dos conquistadores ainda outro nome e se perpetuaria como frutilla.

Uma das primeiras descrições do morango chileno a chegar à Europa foi na “Historia Relation del Reyno de Chile”, publicado em 1646 pelo missionário Alonso de Ovalle. Ovalle viveu no Chile até 1641, e escreveu que “frutos de Jardim nunca são vendidos, e qualquer um pode entrar em um jardim e comer tanto quanto gostar sem qualquer restrição. Apenas morangos, que são chamados frutilla, são vendidos. Embora eu os tenha visto crescendo selvagens por milhas, eles são muito caros quando cultivados. Seu gosto e cheiro diferem daqueles que eu vi em Roma. Em tamanho eles são tão grandes como pêras e são principalmente vermelhos, mas há também os brancos e amarelos”.

No início do século XVIII Louis XIV estava determinado a obter informações completas sobre as colônias da Espanha no Novo Mundo antes que a presença espanhola estivesse forte o bastante para impedir um possível ataque francês. O tenente-coronel Amédée François Frézier era membro do Corpo de Inteligência do Exército Francês e tinha trinta anos quando, em 1711, foi contratado para a missão de reconhecimento das colônias espanholas do Chile e do Peru. Frézier era o homem certo para esse serviço. Engenheiro experiente, excelente matemático, com conhecimentos de botânica e qualificado para fazer observações hidrográficas e anotações pertinentes sobre a posição das fortificações, tamanhos dos exércitos, posição dos melhores ancoradouros e seus respectivos perigos. Anotações que seriam de grande utilidade para os franceses no caso de uma guerra com a Espanha. Frézier era nada menos que um espião, que entrou na América espanhola como se fosse comerciante. Durante os quase dois anos que passou na América, ele observou, estudou, anotou e desenhou as melhores abordagens para o ataque, onde a munição era armazenada e as possíveis rotas de fuga. Frézier fez amizade com funcionários espanhóis que, se tivessem conhecimento da verdadeira natureza da sua missão, teriam lhe tirado a vida. Em seu relatório, que foi publicado com o nome “Relation du Voyage à la mer du Sud, le long de la côte du Chili et Pérou, réalisés au cours des années 1712,1713 et 1714”, ele estimou a força da administração espanhola em cada área que visitou, passou em revista a organização do governo, avaliou seu poder sobre os índios e o apoio que poderia ser esperado no caso de guerra. Ele observou que os espanhóis estavam apenas começando a desenvolver a exploração de ouro e prata e previu que estes se tornariam uma fonte de grande riqueza. Em suas excursões para os portos e as capitais do Chile e do Peru, o viajante também informou sobre as operações da Igreja, a organização social e os costumes dos índios, a geografia da área e seus produtos agrícolas. Ele comentou sobre tudo, desde terremotos à diversidade das estações nas planícies e na Cordilheira, além de descrever várias plantas novas que ele tinha notado, entre as quais um morango excepcionalmente grande que ele havia encontrado na região central do Chile.

Em 19 de Fevereiro de 1714, aproximadamente dois anos após chegar ao Chile, Frézier inicia sua viagem de volta à França levando consigo várias plantas de morango das quais cuidou pacientemente durante toda a viagem. Mais tarde, em 1765, Frézier descreveu a viagem de retorno em uma carta para Antoine Nicolas Duchesne, que estava escrevendo seu livro clássico sobre morangos “Histoire naturelle des fraisiers contenant les vues d’économie réunies à la botanique et suivie de remarques particulières sur plusieurs points qui ont rapport à l’histoire naturelle générale”.

 

“Retornei em um navio mercante de Marselha, cujo capitão, M. Roux de Valbonne, tinha o direito exclusivo de regular o consumo de água doce, que é muito preciosa em uma viagem de seis meses através da zona mais tórrida do oceano. Dessa forma, foi muito difícil conseguir água para regar e manter vivas as plantas de morango até a nossa chegada a Marselha, onde havia milagrosamente cinco plantas vivas. Eu fiquei com três e o capitão reclamou duas para si. Em minha chegada a Paris dei um dos meus exemplares para que Antoine Jussieu a cultivasse no jardim do rei, e outro para M. Peletier de Souzy, nosso ministro de fortificações. A terceira, mantive comigo.”

 

Frézier foi o único explorador conhecido a trazer espécimes de F. Chiloensis de volta para a Europa, dando ao Velho Mundo a oportunidade de conhecer e utilizar os frutos gigantes do Chile.

Inicialmente, os morangos chilenos tiveram um período difícil de adaptação na Europa. As plantas cresciam bonitas, mas não davam qualquer fruto. Jussieu, chefe do Jardim Botânico Real, colaborava com diversos outros botânicos ao redor da Europa, e enviou mudas das plantas chilenas para seus colaboradores. Um desses, o médico e botânico holandês Herman Boerhaave, publicou um estudo sobre as plantas que Jussieu tinha lhe dado, onde as designou como “morango do Chile sem frutos”.

Outros Jardins Botânicos estavam com o mesmo problema, e em 1766 Duchesne conseguiu explicar o motivo: o morango apresenta uma separação clara entre plantas masculinas e femininas. Plantas masculinas apresentam dezenas de pequenas flores, nas quais existe uma grande quantidade de estames (o órgão masculino nas flores), mas que simplesmente não possuem as partes femininas. As plantas femininas são maiores e mais vistosas, e isso deve ter levado Frézier a cometer o erro de selecionar somente plantas femininas para trazer à Europa, aparentemente mais robustas e aptas a sobreviver a uma travessia transoceânica.

A identificação de que plantas do Chile apresentavam separação entre sexos foi muito importante, porque o mesmo não acontece com morangos silvestres, onde a mesma planta possui tanto órgãos masculinos quanto femininos. Hoje sabemos que outra diferença fundamental entre espécies selvagens e domesticadas de morango diz respeito à ploidia, ou a quantidade de conjuntos de cromossomos que um indivíduo ou espécie possui. Humanos, por exemplo, possuem 46 cromossomos, que herdam dos pais (23 cromossomos herdados da mãe e 23 cromossomos herdados do pai). Dessa forma, o conjunto básico de cromossomos da espécie humana é 23, e como possuímos 46 cromossomos, somos seres diplóides. Assim como somos seres diplóides, existem seres triplóides, tetraplóides e poliplóides.

O morango silvestre (F. vesta) é um diploide que possui 14 cromossomos (portanto herda 7 cromossomos da planta mãe, e 7 cromossomos da planta pai), enquanto a variedade F. chiloensis é octaplóide, com um número total de 56 cromossomos.

Uma das perguntas mais intrigantes que os evolucionistas de plantas enfrentam é porque existem tantas espécies de plantas poliplóides. Especialmente entre as plantas cultivadas, a maioria de espécies têm números cromossômicos elevados. O aumento no número de cromossomos em uma planta pode ter diferentes efeitos. No caso do morango, ele está diretamente relacionado à separação entre os sexos e ao aumento de tamanho do fruto. Os Mapuche certamente não puderam deixar de perceber esse aumento no tamanho da fruta e obviamente viram nisso uma vantagem. Eles não foram responsáveis diretos pelo aumento da ploidia, que aconteceu por alguma mutação aleatória, mas foram capazes de selecionar essas plantas, dando início à nova espécie de morangos do Chile.

Tendo levado para a Europa somente plantas femininas, os botânicos tentavam polinizá-las com as variedades de morangos silvestres, mas não é qualquer pólen que pode fertilizar a F. chiloensis. Somente algumas variedades são capazes de fazê-lo e números muito distintos de cromossomos dificulta muito a tarefa de fertilização. Conforme novos tipos de morango eram identificados e chegavam à Europa, os Jardins Botânicos se dedicavam a cruzá-los com as variedades já conhecidas para ver o que acontecia.

Na França, uma dessas novas variedades, identificada na América do Norte e que também tinha frutos grandes (F. virginiana), apresentou ótimos resultados quando era utilizada para polinizar as plantas do Chile. Não à toa ela também é uma planta octaplóide, explicando o grande sucesso que os botânicos tiveram na fertilização das plantas chilenas. As plantas resultantes davam frutos excelentes, bonitos e grandes. Além disso, cresciam em lugares onde a variedade chilena não crescia, permitindo uma disseminação maior do plantio. Nascia assim o morango que consumimos hoje (Fragaria x ananassa).

No ano 916, portanto 800 anos antes de Frézier reconhecer o valor das frutas gigantes do Chile, um sujeito de nome Julius de Berry, lutava ao lado de Carlos, o Simples, então Rei da França. Em uma viagem à Itália, o Rei parou em Auvers onde se encontrou com o Cardeal italiano Clemens de Monte Alto para resolver algum assunto político. Os franceses organizaram um grande banquete para receber o Cardeal e Julius preparou uma série de iguarias com os morangos silvestres que cresciam naquela região. O Cardeal ficou tão impressionado com os pratos que o rei francês resolveu elevar Julius de Berry à condição de cavaleiro, e como era comum na época, mudou seu sobrenome de Julius de Berry para Julius Fraise (que em francês significa morangos). Ao longo dos anos a linhagem dos Fraise prosperou e o nome acabou virando Frézier. Amédée François Frézier era descencente do cavaleiro Julius e herdou seu sobrenome exatamente da planta que ajudaria a transformar em uma das mais conhecidas do mundo. Nada mais apropriado do que um Frézier para descobrir as “fraises” do Chile.

 

PS- O nome científico do morango moderno, Fragaria x ananassa merece uma explicação. A presença do “x” entre as duas palavras é um indicativo que se trata de um híbrido entre duas espécies distintas. No nosso caso, entre a F. virginiana e a F. chiloensis.

 

PS2- Um dos livros mais completos sobre o morango, e fonte fundamental para esse texto é “The Strawberry, History, Breeding and Physiology”, escrito pelo botânico norte-americano George M. Darrow. Para minha surpresa, o primeiro capítulo, uma espécie de introdução, foi escrito por Henry Wallace, vice-presidente dos Estados Unidos durante a segunda guerra mundial, entre 1941 e 1945, quando o presidente era Roosevelt. Além de político, Wallace era botânico e já havia inclusive sido ministro da agricultura. Era um grande entusiasta dos morangos. Nunca foi um vice-presidente decorativo e muitos diziam que era o homem mais preparado para assumir a presidência em seu tempo. Foi removido da chapa que concorreu à reeleição em 1945, perdendo o lugar para Truman (que assumiria o cargo 3 meses depois, com a morte de Roosevelt). A substituição de Wallace por Truman é um evento muito obscuro da política dos EUA e está no livro “A História Não Contada dos Estados Unidos”, de Oliver Stone e Peter Kuznick. As manobras políticas que removeram Wallace da chapa, e a morte prematura de Roosevelt levantam a suspeita de que havia um complô para colocar Truman no poder, não através do voto direto, mas pegando carona nos votos de Roosevelt. Enquanto alguns vice-presidentes dão golpes, outros sofrem golpes, como foi o caso de Wallace.

 

PS3- Se de fato nomes condicionam destinos, e aproveitando que estamos falando de vice-presidentes, temos mesmo que temer o Temer!

 

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One thought on “Est omen in nomen (o destino está no nome)

  1. Madame Du Berry, foi a amante do rei que era sogro da Rainha Maria Antonieta. Ele já havia morrido quando saíram decapitando nobres e encostados do palácio. Du Berry era uma socialite rococó, ela era filha de burgueses e como uma patricinha bem nascida essa investida como ser a amante do Rei, quase uma rainha era o que pelo menos seus pais esperavam pra ela. Esse negócio dos nomes é uma coisa fantástica, ainda se pode se achar mais coisa se cavar mais, dentro do tema morangos! Um abraço!

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