Cauim: a primeira cerveja brasileira

A biblioteca da Universidade de Zurique havia a pouco se transferido para seu campus novo, Irchel, que ficava afastado do centro. Era um lugar incrível, amplo, confortável, moderno, e tinha uma coleção inacreditável de literatura dos descobrimentos. Angleria, las Casas, Lopes de Oviedo, Andargoya, Sanches Bortero, Pedro Margarite, Motolíne, Lopes de Gomarra, Hans Staden, o Inca Garcilasso de la Vega, Cieza de Leon, Bernardo Boyl, Hernam Cortes, Cabeza de Vaca, Michele da Cuneo, Alvarez Chanca, Colombo, André Thevet, Jean de Lery, e muitos outros. Passava tardes inteiras lá e lí muita coisa sobre os descobrimentos e sobre as plantas do novo mundo. Os livros eram antigos, mas praticamente intocados. Em sua maioria estavam escritos em espanhol (embora alguns fossem em francês) e ninguém se interessava por eles.

Nessa época eu fiquei particularmente interessado no “La cosmographie universelle d´André Thevet, cosmographe de Roy“, um livro em 4 tomos escrito em 1575, bastante ilustrado, sendo um dos tomos dedicado inteiramente aos índios tupinambás. André Thevet embarcou para o Rio de Janeiro na frota de Villegañon, permanecendo em terras brasileiras de novembro de 1555 a janeiro de 1556. Foi durante esse curto período um grande observador da natureza e dos indígenas da Baía de Guanabara. Neste livro, pela primeira vez, são dados detalhes da utilização da mandioca como parte fundamental da dieta dos Tupinambás. O livro acabou gerando muita polêmica quando foi lançado, porque nele Thevet acusa os protestantes que vieram junto com Villegañon de serem os responsáveis pelo fracasso da França Antártica. Inicia-se alí uma interessante rixa intelectual entre André Thevet e Jean de Lery. Isso porque Lery era um desses protestantes, e viu-se obrigado então a responder a André Thevet, o que fez no livro “Histoire d’un voyage faict en la terre du Brésil“.

A história de Lery merece ser contada. Pode-se dizer que poucos dos que se arriscaram do novo mundo tiveram uma vida tão cheia de aventuras como ele. Lery veio ao Brasil acompanhando um grupo de ministros e artesãos protestantes, que se juntariam a Villegañon. Acontece que Villegañon teve problemas com os protestantes e terminou por expulsá-los da colônia, acusando-os de heresia (esse é um evento bastante mal contado pela nossa historiografia). Alguns protestantes foram presos e depois mortos (durante esse episódio foi escrita a famosa confissão de fé da Guanabara, o primeiro manifesto protestante das Américas), enquanto outros, incluindo Lery, conseguiram fugir, e passaram cerca de dois meses na região da Baía de Guanabara, abrigados em aldeias dos índios Tupinambás. Os missionários que ousavam retornar à colônia de Villegañon eram mortos, e só haviam duas possibilidades: ficar o resto da vida com os índios, ou tentar retornar para a França por conta própria. A primeira possibilidade se mostraria mortal, porque os portugueses logo costurariam uma aliança com os Tupinambás. Os missionários decidiram então tentar a volta, e para isso utilizaram um navio bastante velho e sem condições de fazer tamanha viagem, de forma que o simples fato de não ter naufragado já é inacreditável. De qualquer maneira a viagem foi muito complicada e demorou demais, causando falta de água e comida para os tripulantes. Ao final do percurso, Lery e os demais estavam comendo couro, papagaios, ratos e até mesmo mastigando o Pau-Brasil que traziam consigo. Já pensavam em tirar na sorte qual deles morreria para servir de alimento aos outros quando chegaram à Europa.

“Histoire d’un voyage faict en la terre du Brésil” é na realidade o diário de Lery do período que passou entre os índios. Nesse livro Lery cita detalhes do preparo do Cauim, além de reconhecer que os índios eram grandes bebedores:

“A preparação de Cauym é um trabalho estritamente feminino, sem envolvimento dos homens. Pedaços finos de mandioca são fervidos até ficarem bem cozidos e se deixa esfriar. Então as mulheres e meninas se reúnem ao redor da panela; levam uma porção até a boca, mastigam bem, ensalivam e botam a porção em um segundo pote… nem o alemão, nem o flamengo, nem os soldados, nem o suíço; quer dizer, nenhum desses povos da França, que se dedicam tanto ao beber, vencerá os americanos nesta arte “.

Ele relata também que ele e os companheiros tentaram preparar “cauym limpo”, moendo e cozinhando a mandioca, sem o processo de mastigação; mas não funcionou. Eventualmente eles se acostumaram à bebida dos nativos. “Para esses leitores que repudiam a ideia de beber o que outra pessoa mastigou, deixe-me lembrá-los de como nosso vinho é feito pelos camponeses, que amassam as uvas com os pés, às vezes usando botas; algo que pode ser menos agradável que a mastigação de mulheres americanas. Assim como dizem que a fermentação purifica o vinho, podemos assumir que aquele cauym se limpa também”

Na verdade a etapa de mastigação é de muita importância para o processo, porque permite que o amido presente na mandioca seja quebrado pelas amilases presentes na saliva, transformando-se no açúcar que vai abastecer a fermentação.

Mais tarde tive a oportunidade de visitar uma das mais antigas casas publicadoras do mundo, na Antuérpia, e alí pude ver um exemplar do “América” do gravador holandês Jodocus Hondius, muito influenciado pelos livros de Thevet e Lery. Uma das gravuras desse livro é a representação de um festejo tupinambá, com a seguinte descrição:

festejo tupinamba

“modo de preparar e tomar a bebida entre os [nativos] americanos no Brasil, onde as virgens – logo depois que mastigam as raízes – cospem-nas, em seguida cozinhando-as em potes e oferecendo-as aos homens para que eles bebam. Essas bebidas especiais são consideradas deliciosas entre eles”

Mas a melhor descrição do cauím, na minha opinião, está no livro de Hans Staden Duas Viagens ao Brasil” (mas que possui o incrível nome oficial de “História Verdadeira e Descrição de uma Terra de Selvagens, Nus e Cruéis Comedores de Seres Humanos, Situada no Novo Mundo da América, Desconhecida antes e depois de Jesus Cristo nas Terras de Hessen até os Dois Últimos Anos, Visto que Hans Staden, de Homberg, em Hessen, a Conheceu por Experiência Própria e agora a Traz a Público com essa Impressão“). Ao descrever um típico banquete indígena, Hans Staden comenta a respeito das bebidas feitas com a raiz da mandioca:

“As mulheres fazem as bebidas. Elas pegam raízes de mandioca e fervem grandes panelas cheias. Quando as raízes estão bastante cozidas, são retiradas e despejadas em outro pote, para esfriar um pouco. Depois disso, as mulheres jovens sentam-se, mastigam a mandioca e devolvem o que mastigaram para potes especiais. Quando todas as raízes cozidas já estão mastigadas, aquilo tudo volta para uma panela cheia d’água, que é misturada com a papa das raízes. O produto todo é aquecido mais uma vez. Eles possuem potes especiais, que são enterrados no solo pela metade. (…) Despejam todo o líquido nesses potes e os fecham bem. A beberagem começa a fermentar por si mesma, tornando-se forte. Permanece dois dias fechada, depois bebem dela e embriagam-se. Trata-se de uma bebida grossa e nutritiva. Cada cabana prepara sua própria bebida. Devendo-se celebrar uma festa na aldeia (…), todos se encaminham para uma primeira cabana e ali bebem toda a bebida. Seguem assim em círculo, até que todas as bebidas de todas as cabanas tenham acabado.(…) As mulheres servem as bebidas, como é o costume entre eles. Alguns se levantam, cantando e dançando em torno dos potes. Aliviam-se de suas águas no mesmo lugar em que bebem. O banquete dura a noite inteira. Eles dançam entre as fogueiras, gritam e sopram seus instrumentos…”

Hoje em dia a cervejaria Colorado, de Ribeirão Preto produz a boa Colorado Cauim, que contém fécula de mandioca em sua receita. Uma homenagem aos pioneiros da cerveja no Brasil. Poderiam fazer um lote de cauim verdadeiro, sem o malte importado e o lúpulo tcheco que eles dizem conter, e com direito a saliva de mulheres.

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